A Inveja
Angela Moura
Inveja já nasceu invejando todos os predicados.
Não agüentava a beleza de Joana, a inteligência de
Sabrina, a naturalidade de Virgínia, a esperteza
de Marlene e assim por diante.
Substantivos também a incomodavam,
principalmente, quando eram alvo de elogios, como
o sorriso do Carlinhos, o carrinho da Flavinha, o
namorado de Tereza e o corpo da Bernadete.
Tudo era demais para seu bom coração e para
a sua grande e falsa modéstia à parte.
O seu veneno era conhecido e reconhecido
pelos amigos, desde os tempos de escola.
Sem dúvida, tratava-se de seu único e
maior potencial.
Possuía uma grande qualidade: a de tomar
conta da vida de todos que a cercavam.
Diariamente, anotava informações sobre o que
andavam fazendo e registrava, mentalmente,
tudo o que ouvia. E, cada vez mais, ficava
popular a sua memória de elefante.
Trabalho era o que não faltava. Mesmo que algum
amigo ficasse distante por um período longo, não
tinha problema: Inveja, em poucos minutos,
conseguia pô-lo a par de todos os acontecimentos
da comunidade, de forma elefantal.
Odiava gente besta. E, por esse motivo, nas
ocasiões em que citavam um fulano que havia
realizado uma façanha, tratava de lembrar a todos
o que esse fulano não tinha conseguido fazer.
Era sua forma de contribuição à sociedade.
Detestava o sucesso de alguém.
Ora, porque alguém deveria fazer alguma
coisa sozinho?
O grupo é mais forte. A união faz a força e uma
andorinha nunca fez verão. Com esses exemplos e
argumentos, cuidava para não permitir a entrada ou
permanência no grupo de quem quisesse aparecer
demais. Fazia questão de logo esvaziar qualquer
balão que pudesse voar mais alto.
Inveja apreciava suas próprias virtudes... E como!
Gostava de enumerá-las, em altos e bons tons,
o que a atrapalhava um pouco.. O tempo para
contá-las era tanto, que a impedia de realizá-las.
- Nossa! Essa gente é um grande papo furado!
Uma enorme perda de tempo, pensava.
Fazia marcações em determinadas pessoas - possíveis
futuras ameaças. Não ostensivamente, é claro.
Sabia ser sutil. Primeiro, seduzia a vítima, em seguida,
abria o segundo ato: observava.
Ao descobrir seus pontos fracos, dava o bote, certeiro
e rasteiro. E menos um para contar histórias...
Na maioria das vezes, não se dava a muito trabalho.
Usava todo o seu veneno, destilado homeopaticamente,
de preferência pelos ouvidos daqueles que estão com
os próprios sempre a postos. O efeito, previsível
e
infalível, era imediata e voluntariamente absorvido,
a ponto de ser levado pela corrente sanguínea às maçãs
do rosto que podiam ficar pálidas ou afogueadas,
em pouquíssimos minutos. Em casos de impacientes
ou dominadores obtinha agravantes colaterais.
Discussão era o mais freqüente; mas tinha também
as brigas, os tiros com e sem mortes, até a guerra.
Pena que, na maioria, o agravo era mais brando.
Passava do ouvido para a barriga ou cabeça e
dava apenas uma dorzinha. Paciência...
Inveja quando queria era imbatível. Ninguém podia
com ela. Armava aquela confusão e, assistindo
de camarote, ficava se contorcendo de rir.
A última da Inveja é que mordeu a própria língua.
Ao trincar os dentes com raiva, teve um choque
anafilático-colérico e morreu fulminada.
Em sua lápide alguém escreveu:
"Aqui jaz a Inveja - medíocre, meditadora e
mediúnica do alheio, real exemplo de grandes
feitos em toda a História..." Acompanhando
os dizeres, via-se uma cobrinha ingênua e
sorridente.
Eu estava acabando de contar para duas amigas
que o porteiro do Zôo e o filho juram, de pés
juntos,
que acabaram de ver a Inveja na esquina. Pode?
E uma delas, a mais simpática, aquela que não
consegue parar de mostrar os lindos dentes e a língua
afiada, falou:
- Vocês falam de reencarnação, ressurreição,
sei lá mais o quê. O que vocês não sabem é que
as cobras, simplesmente, mudam de pele.
E saiu rindo da gente...
Do livro ROBÔ DA VIDA E OUTROS
CONTOS
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by Angela Moura
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