Não sei o porquê, lembrei minha
mãe:
- Seu vizinho, pai de todos, fura bolo e mata
piolho...
O mais jovem, com voz fanha, faz uma saudação:
- Dormiu bem, tia?
Devolvo um sorriso de bom dia.
Penso que deveria ser solidária e dizer:
- Meu cão está cheio de pulgas
e me coçei a noite toda... Tive uma dor
de cabeça de rachar. Não preguei
os olhos... Ou qualquer coisa esperta.
A visão daquela vida miserável
dá um nó em meu estômago.
Apesar de tudo, são pessoas light. Levam
apenas uma mala, com toda sua vida.
Imagina eu, de salto, com um trem de malas amarradas
umas às outras, correndo pela rua...
Enquanto dou asas à imaginação,
brancos, negros e mulatos, de 15 a 60 anos,
desfilam em minha frente.
Entre eles, uma grávida de 8 para 9 meses,
com capricho, varre a calçada.
Os maus hábitos deixam vestígios
no meio fio, mais ou menos escondidos pela cortina
de carros estacionados.
Bate um cheiro forte. Alguém comeu repolho
no jantar...
Como toda vizinhança que se preza, acabo
sabendo a estória de cada um.
A maioria saiu de casa, depois de brigas por
cachaça ou droga, e acampou em uma rua
próxima.
As famílias não os abandonaram
de vez. Para tranquilizarem a consciência,
continuam pagando abrigos, em troca de banho,
roupa e comida. Afinal, quem quer colocar um
mendigo no álbum de família?
Morador de rua sobrevive. Arruma bicos para
o pão e o vício.
O melhor bicudo é o flanelinha, que arruma
uns $ 80 por dia útil, com mais trocados
nos domingos de sol e praia. O ponto é
disputado no grito. Todo mundo quer. Ninguém
esquenta: dá para dividir a grana entre
eles, na proporção de tamanho
e força.
Mas, a maré, às vezes, está
mais para jacaré - só dá
para olhar de longe.
Chega, sem aviso, uma chuva daquelas, que lava
a alma e os restos. Com boeiros sempre entupidos,
a rua vira lagoa.
É um corre-corre danado.
Alguém esqueceu a perna-de-pau e uns
bagulhos...
Passado um tempo, voltam todos para marcarem
ponto.
Tempos difíceis.
O frio está chegando. O mais idoso tem
tossido à noite toda.
- Será que um xarope ajudaria?... Aquele
cobertor velho que nem uso mais...
A grávida teve o filho. Até hoje,
não sei se um menino ou menina. Parecia
que ia ser gigante.
Outro dia, toda aprumadinha, com a criança
no colo, veio visitar o marido. Com pressa,
se mandou para outra freguesia. E não
voltou.
Numa madrugada, surge o novo e poderoso choque
de ordem.
- Nossa! Parabéns!
Até tranquei minha janela.
Recolheram-se ou foram recolhidos. A calçada
ficou vazia por um bom tempo. LIMPINHA!
Cruzei na rua com meus vizinhos e nem reconheci.
Banho tomado e bem vestidos, bonitos que nem
laranja de amostra, desfilavam simpaticamente
pelas redondezas.
- Hummm! Perfume francês?...
Desconheço a qualidade dos programas
assistenciais. Acho que abrigos são iguais
a Hospital Público. Deve-se ter que rezar
para conseguir sair correndo de lá...
Ao contrário do que dizem, não
vieram de longe. Os meus vizinhos são
cariocas de Ipanema e, apesar da falta de educação,
que ninguém se importou em dar (?!),
amam o bairro, assim como eu e você.
Vida de morador de rua é dura, gente!
Mas, esses anti-heróis modernos sempre
voltam.
- Daqui não saio... ...ninguém
me tira...
Fazer o quê?